DAS FUGAS AO SEQUESTRO POR
PIRATAS: A CONFUSA VIDA DE MIGUEL DE CERVANTES
Nascido em 29 de setembro de
1547, a vida de Miguel de Cervantes vida foi uma confusão sem fim. Depois de
passar a infância mudando constantemente de cidade – passou por lugares como
Valladolid, Córdoba e Madri –, em 1569 precisou sair da Espanha depois de ser
condenado ao decepamento da mão direita e a passar dez anos banido do país por
ter ferido em um duelo em Sevilha um rapaz com boas relações com a corte.
Ruma então para a Itália, onde
alguns anos depois se alista em uma das companhias da Santa Liga – Exército
europeu que combateu as invasões turcas – e luta na Batalha de Lepanto, em
1571, na Grécia. Lá seria ferido gravemente, com dois tiros no peito e um na
mão esquerda – se havia salvo a mão direita ao fugir de sua terra natal, a
esquerda permaneceria troncha para o resto de sua vida.
Passou cerca de um ano internado
em um hospital da Sicília, até que conseguisse se recuperar e fosse reintegrado
ao Exército pelo qual participaria de novas campanhas. Somente em 1575
Cervantes resolve voltar à Espanha. Embarca em Nápoles tendo Barcelona como
destino, porém, no dia 26 de setembro, sua embarcação é atacada por piratas e
Miguel é levado para Argel como prisioneiro escravizado, que só seria libertado
depois de pago um resgate.
O escritor permaneceria preso até
1580. Durante esse tempo, participou de, pelo menos, quatro tentativas
frustradas de fuga e só não foi morto porque carregava consigo algumas cartas
de recomendação assinadas por dom João de Áustria, almirante-mor da Santa Liga,
e pelo vice-rei da Sicília.
Por causa desses documentos, o
rei de Argel acreditava que tinha em posse alguém de grande valia, por quem
pagariam uma quantidade substanciosa de dinheiro. Para que conseguissem
libertar Miguel, seus pais precisaram fazer grandes dívidas e ainda contar com
a ajuda de padres trinitários, que resgataram o homem de Argel. Depois de 12
anos, finalmente, o escritor voltaria a Madri e estaria novamente com a
família.
Em 1584, Cervantes teria tido um
caso com Ana Franca de Rojas, uma taverneira com quem possivelmente teve sua
única filha, Isabel. Não há certeza, no entanto, de que ela era mesmo filha do
escritor. O que se pode afirmar é que no mesmo ano, em dezembro, ele se casa
com Catalina Salazar.
A dúvida sobre a paternidade de
Cervantes é um dos muitos exemplos dos vazios e incertezas que há em sua
biografia. “Os documentos historiográficos sobre ele são poucos, há grandes
lacunas e alguns mistérios, principalmente no período da sua juventude.
Pesquisadores buscam detalhes de sua vida até nos livros que ele próprio
escreveu, principalmente nos prólogos – como em Novelas Exemplares, onde há um
autorretrato –, o que é incerto, porque são obras de ficção. O episódio do
duelo que teria motivado o desterro, por exemplo, embora muitos considerem a
explicação mais plausível para sua saída da Espanha, não tem comprovação
direta. Há algumas certezas: que ele teve uma vida nômade, que foi ferido na
guerra e ficou cinco anos preso em Argel, por exemplo”, explica Sérgio Molina,
responsável pela tradução de Dom Quixote para a Editora 34.
Jean Cavanaggio, um dos mais
respeitados cervantistas e autor de Cervantes, uma espécie de ensaio biográfico
sobre o autor, também aponta esses problemas em sua obra. “Boa parte de seus
escritos se perdeu; os que lhe foram atribuídos a posteriori são de
autenticidade duvidosa, e mesmo os que conservamos e fizeram sua glória têm uma
gênese ainda obscura, baseada em vagos indícios. Os manuscritos que chegaram
até nós limitam-se a atas notariais, anotações de contas e duas ou três
cartas”, escreve.
Com a falta de documentos, muitos
historiadores e estudiosos fazem suas inferências quanto à vida do escritor.
Para o dramaturgo Fernando Arrabal, autor de Un Esclavo Llamado Cervantes, por
exemplo, há evidências de que o espanhol era homossexual, que Dom Quixote é um
romance homoerótico e que seu autor só teria conseguido deixar Argel com vida
porque seria amante do rei local.
Escritor sem Fim
Mesmo em meio a uma vida tão
atribulada, Cervantes se tornaria um dos escritores mais importantes da História.
Uma figura-chave para que isso acontecesse foi Juan López de Hoyos, reitor do
Estudio de la Villa, importante escola preparatória para o ingresso na
universidade – universidade que Miguel jamais chegou a cursar. O primeiro
soneto de Cervantes de que se tem notícia data de 1567.
No ano seguinte, quando vira
aluno de López de Hoyos, sua produção se intensifica, tanto que o mestre inclui
já em 1569 – mesmo ano em que o escritor foge para a Itália –, quatro poemas do
pupilo em uma publicação em homenagem à recém-finada rainha Isabel.
Durante a mais de uma década que
esteve fora da Espanha, o autor provavelmente não deixou de escrever, em que
pesem os percalços. “No período em que foi soldado e esteve preso em Argel,
presume-se que Cervantes não tenha tido condições de escrever de forma
sistemática, mas ele depois trabalharia essas experiências em sua literatura.
A Novela do Capitão Cativo,
interpolada em Dom Quixote, e as peças Los Tratos de Argel e Los Baños de Argel
são bons exemplos disso”, conta Molina. Fato é que no próprio cativeiro
Cervantes compôs sonetos para alguns companheiros também sequestrados.
Quando retorna à Espanha, revê
sua família, casa-se, consegue um emprego e leva uma vida relativamente estável
– as mudanças de cidade continuariam acontecendo periodicamente e, de vez em
quando, ainda teria problemas com a Justiça e passaria algumas temporadas na
prisão (acusado de venda ilegal de trigo, por exemplo) –, conseguindo enfim
engrenar sua produção literária.
“Cervantes escreveu muito mais que
Dom Quixote, mesmo se levarmos em conta apenas a obra narrativa, que inclui
quatro livros – cinco, considerando as duas partes de Quixote –, mais os textos
que se perderam. Tem também a produção teatral, que é muito importante, e a
poética, que, embora menor, não é de desprezar”, completa Sérgio Molina.
Moinhos de Vento
Cervantes produz sua obra com o
apoio de vários mecenas. O principal deles foi o conde de Lemos, vice-rei de
Nápoles, com quem o autor teve uma desilusão ao não ser convidado para fazer parte
de um círculo de escritores na cidade italiana. Ele publica em 1585 La Galatea,
mas é em 1605 que, enfim, lança a primeira parte da obra que gravaria para
sempre seu nome na literatura universal, Dom Quixote, sucesso imediato na
Espanha e fora dela.
No texto Notas sobre a Máquina
Voadora, da edição brasileira da Editora Penguin, o escritor e crítico
literário argentino Ricardo Piglia aponta Dom Quixote como “o primeiro romance
da história” e cita suas traduções: “É um dos primeiros acontecimentos da literatura
a chegar a lugares muito diversos. A primeira tradução para o inglês é de 1612.
A tradução para o francês, de 1614. Para o italiano, em 1622. Para o alemão, em
1621. Quase imediatamente o livro começou a circular em todas as línguas.”
O reconhecimento foi praticamente
instantâneo. “Alguns escritores espanhóis contemporâneos de Cervantes tentaram
desqualificá-lo por ele ter feito uma obra cômica, que seria um gênero
inferior, mas já havia aí despeito por causa do sucesso do livro. O cômico em
Dom Quixote é apenas uma das suas camadas de entendimento; há todo um jogo de
ironias que permite, por exemplo, criticar os poderosos pela boca de
personagens que os elogiam. O texto é muito ambíguo. Segundo Américo Castro
[outro acadêmico que dedicou parte de sua vida às pesquisas sobre o escritor],
boa parte da grandeza de Dom Quixote resulta das artimanhas que Cervantes usou
para contornar a censura da Inquisição”, diz Molina.
No rastro do sucesso, em 1614 uma
continuação da obra é lançada por outro escritor, que se esconde sob o
pseudônimo de Alonso Fernandez de Avellaneda, cujo trabalho ficaria conhecido
como Dom Quixote Apócrifo. “É um livro super moralista, que reduz o personagem
ao risível, tanto que ele acaba num manicômio, e muito desrespeitoso com o próprio
Cervantes, que é diretamente insultado no prólogo”, aponta o tradutor.
O autor original não gostou nem
um pouco da cópia, tanto que no segundo volume verdadeiro de Dom Quixote,
lançado em 1615 – em datas próximas ainda publicou outras três obras –, faz
referências ao título apócrifo.
Na história, o protagonista muda
seus caminhos apenas para contrariar o que havia sido escrito por Avellaneda e
até encontra os volumes com sua falsa história sendo impressos em uma
tipografia.
O tempo, os estudos e as diversas
interpretações que se podem fazem sobre a obra máxima de Cervantes foram
essenciais para que tanto Dom Quixote quanto seu autor chegassem a ser
relevantes pelo resto da história. “A primeira parte virou uma febre internacional.
Ao longo do século 17, o livro
começa a ser citado e retrabalhado por escritores de vários países, incluindo
William Shakespeare. No século 18, a febre explode de vez: na Inglaterra,
Cervantes é adotado como mestre do romance satírico por escritores como
Laurence Sterne, fascinados com as possibilidades abertas pelo narrador que ele
criou, pela mistura de gêneros, pelo fio narrativo sinuoso, por toda a
liberdade que sua obra comporta e propõe.
Na virada para o século 19 surge
na Alemanha a interpretação romântica de Dom Quixote, que ainda persiste até
hoje entre boa parte dos leitores. Já na Espanha, depois do sucesso inicial da
primeira parte, o romance fica em segundo plano e só começará a ser
redescoberto no século 19, e para valer mesmo em pleno século 20”, explica
Molina.
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