QUESTÕES DA IMIGRAÇÃO ALEMÃ NO RS
Com a grande proliferação de
colônias rurais, surgiram múltiplos pontos de urbanização. Não demorou para que
em diversos locais os povoados assumissem proporções de vila, contando com as
primeiras irmandades religiosas leigas, clubes sociais, associações esportivas,
políticas e de mútuo socorro, e a partir delas se formaram numerosas cidades.
Grande parte dos imigrantes, de fato, não era composta de agricultores, mas de
operários urbanos e profissionais especializados. Entre 1824 e 1845 60% dos
homens de São Leopoldo eram artesãos, industriais, comerciantes, etc.
Com efeito, os alemães foram
responsáveis pela urbanização e formação de novos municípios em grande parte da
metade norte do território gaúcho. A maioria desses novos municípios se
emancipou com pequenas áreas territoriais. Entre 1954 e 1965 foram criados 140
novos municípios, todos na região colonial (incluindo a região colonial
italiana, que passou por um processo semelhante), e muitos deles mais tarde se
fragmentaram ainda mais com a emancipação de distritos. Segundo Silva Neto
& Oliveira, "esse processo é a expressão da dinâmica econômica, social
e política da colonização das áreas de floresta do estado. À medida que a
ocupação das matas avançava pelo interior do estado, ela era acompanhada,
gradativa e rapidamente, pelo surgimento de povoados e pela posterior formação
de novos municípios. [...] A alta densidade demográfica que acompanhou o
processo de ocupação das terras de mato pelas famílias dos agricultores
representou um fator decisivamente influente na dinâmica do desenvolvimento
rural"
Desenvolveu-se entre os alemães
uma forte identidade coletiva baseada na etnia, na cultura e no idioma, cujas
origens estavam ligadas ao trabalho na terra e ao processo de conquista do
território. Para Giralda Seyferth, "de um modo geral, a crença na
comunidade étnica estava respaldada na própria constatação das diferenças
culturais, evidenciadas a partir do contato com a sociedade brasileira",
mas nas últimas décadas do século XIX "a situação de minoria nacional já
se tornara incômoda para os segmentos mais politicamente atuantes das antigas
colônias". O sucesso da obra de colonização para os próprios alemães era
uma prova de suas capacidades, e inevitavelmente passava pela consolidação da
emancipação política das colônias mais importantes, pela progressiva conquista
de espaços de atuação pública e pela reivindicação da plena cidadania. Ao mesmo
tempo, afirmavam-se as diferenças dos alemães em relação aos brasileiros, mas
apesar dos fortes laços mantidos com a antiga Pátria europeia, nunca foi
questionada a lealdade à Pátria adotiva.
Na própria capital nas primeiras
décadas do século XX a presença alemã era relevante, incluindo uma elite
influente e diversas associações e clubes. Carlos von Koseritz havia deixado
uma funda marca na cultura e na imprensa metropolitana no fim do século XIX,
logo depois Pedro Weingärtner era aclamado como o maior pintor de sua geração
no estado. e famílias empresariais como os Renner, Gerdau, Bins, Johannpeter,
Neugebauer, Möller e outras iniciavam sua fase de apogeu.Essa elite germânica
foi um dos grandes financiadores de um ciclo de renovação arquitetônica em
Porto Alegre, fazendo construir uma série de palacetes residenciais e
imponentes sedes de bancos e empresas. O governo positivista estimulava esse
desenvolvimento, estando ele próprio engajado numa renovação e embelezamento
urbanístico da área central da cidade, a fim de torná-la o "cartão de
visitas" do estado, ansiando por apresentar-se como civilizado e
progressista e ganhar mais espaço político no cenário nacional. Sob os
auspícios oficiais foram construídos diversos edifícios públicos de dimensões
palacianas e decoração suntuosa. As mudanças também acompanhavam novos
conceitos de urbanismo, habitabilidade e higiene e novas modas. Theodor
Wiederspahn, arquiteto, Rudolf Ahrons, construtor e João Vicente Friedrichs,
decorador, todos alemães, foram os protagonistas desse movimento.
Apesar do interesse pela
autoafirmação e individualização, no início do século XX nos principais núcleos
coloniais já acelerava o processo de aculturação à brasilidade, e embora o uso
do alemão ainda predominasse no cotidiano, a maioria das colônias já era
bilíngue e contava com muitos agregados brasileiros. Possivelmente em parte
devido à percepção de que o legado alemão começava a ser dissolvido e ameaçado,
se multiplicaram as sociedades de canto, ginástica e tiro e outras agremiações
de cultura alemã em numerosas cidades e vilas coloniais, e os contatos com a
Alemanha também eram assíduos. Herois e figuras ilustres alemãs eram objeto de
homenagens e monumentos, davam nome a escolas e ruas; artistas alemães,
especialmente músicos, poetas e literatos, eram venerados em concertos, teatros
e saraus, e folhetins em alemão tinham um largo público. Na historiografia mais
antiga da imigração a transformação da selva ameaçadora em cidades prósperas e
civilizadas pelo braço valoroso, o coração constante e o espírito elevado do
colono foi uma representação comum. Em algumas das publicações, o alemão era
comparado ao bandeirante paulista, outra imagem mitificada do desbravador
intrépido, mas era ainda melhor, pois pertencia a uma raça superior. Essa
ênfase na questão étnica seria acirrada com a ascensão do nazismo no século XX,
ao qual muitos teuto-brasileiros manifestariam adesão.
As escolas das comunidades e
vilas do interior ensinavam em alemão, jornais em alemão circulavam amplamente,
e em diversas cidades de origem alemã no início do século alemães ocupavam a
Intendência e cadeiras no Conselho Municipal, algo que até então havia sido
impossível devido ao antigo monopólio dos cargos públicos pelos descendentes de
portugueses. Em 1929 Alberto Bins, filho de alemães, era eleito intendente de
Porto Alegre, depois de ter sido deputado estadual em quatro mandatos.
Contudo, a subida de Getúlio
Vargas ao poder significou uma guinada radical na abordagem do governo a
respeito da questão colonial. Se até então aos alemães haviam sido favorecidos
— ou pelo menos se procurou tentar suprir suas necessidades na medida do
possível para um contexto de recursos sempre escassos, filosofias divergentes e
turbulência política endêmica —, e haviam sido um povo de eleição preferencial
para o governo em todos os projetos de povoamento, agora seu empoderamento
gerava receios tanto entre as elites dominantes como entre a população em
geral, e eles passavam a ser postos sob suspeita, enquanto diferentes correntes
de direita disputavam o poder. Essa virada, na verdade, não aconteceu de
repente, mas quando foi institucionalizada pelo Estado varguista pôde produzir
seus impactos mais vastos e dramáticos. Desde o início do século alguns
intelectuais já levantavam a questão do "perigo alemão", havia
teorias da conspiração em voga dizendo que o Império Alemão pretendia
conquistar a América ou pelo menos anexar o sul do Brasil, e no início da I
Guerra Mundial o tão falado mas nunca comprovado "perigo alemão"
havia se tornado, segundo René Gertz, "em algo cotidiano, ao menos para
brasileiros mais ou menos informados".
Os alemães em geral, mesmo nas
comunidades rurais, no início do século XX já estavam assimilados o bastante
para não negar nem desejar negar sua nacionalidade brasileira, a despeito de
todas as fanfarras sobre suas origens europeias e etnia "superior" e
da defesa constante das suas tradições próprias, e desejavam, ao contrário,
serem reconhecidos como cidadãos brasileiros plenos, mas os dilemas foram
ganhando força num crescendo.
Na Alemanha o nazismo
imperialista iniciava sua ascensão e viria a ter uma legião de simpatizantes no
Brasil, mas embora Vargas e outras altas autoridades também lhe fossem
simpáticos, e embora a Alemanha fosse um importante parceiro comercial, no
início da II Guerra o governo enfim preferiu se alinhar com os Estados Unidos e
o nazismo no Brasil foi reprimido. Mesmo antes deste ponto crítico a
disseminação das ideologias nazista e integralista entre muitos teuto-brasileiros
causava preocupação num momento em que o governo procurava eliminar
dissidências internas, e havia a suspeita de que os nazistas da Alemanha
tentavam interferir nos assuntos internos brasileiros através de agentes
dissimulados, inclusive suspeitava-se que tivessem participado na tentativa de
golpe do Integralismo liderado por Plínio Salgado em 1938. A política era
apenas um dos aspectos desfavoráveis aos alemães. Vargas também direcionou seu
programa de governo para uma homogeneização em larga escala da sociedade
brasileira sob a bandeira da lusofonia e da promessa de paz social. Foi imposta
uma nacionalização e aculturação forçada das minorias étnicas e culturais em
todo o Brasil. Para muitos naquela época, as múltiplas colônias de estrangeiros
que floresciam livremente pelo território nacional eram anomalias e quistos no
tecido social que precisavam ser dissolvidos, pois ameaçavam a coesão da nação
e, com suas diferenças, perturbavam a harmonia e integração da sociedade.
O regime varguista era autoritário,
a retórica usada na época fazia veementes apelos a medos irracionais da
população, a teorias da conspiração e aos aspectos emocionais do nacionalismo,
e se desencadeou uma onda de perseguições, violências, humilhações e censura
não só aos alemães, mas a italianos, japoneses e outros grupos que até então
haviam sido considerados valiosos colaboradores no progresso nacional. Escolas
foram fechadas, exigiu-se salvos-condutos para os deslocamentos e associações
recreativas e culturais alemãs, e mesmo algumas eclesiásticas, foram postas sob
vigilância ou interditadas. A entrada do Brasil na II Guerra Mundial contra a
Alemanha e o bloco nazifascista agravou a pressão e a censura contra a cultura
e a fala germanizada da região. Conforme resumiu a pesquisadora Ana Maria
Dietrich, "dentro do projeto de nacionalização do Brasil almejado por
Vargas, o alemão passa de perigo ideológico, pela divulgação do ideário
nazista, para perigo étnico, como alienígena ao ‘Homem Novo’ que se desejava
construir. Com a entrada do Brasil, na II Guerra Mundial, em 1942, ao lado dos
Aliados, o perigo vira ‘militar e ideológico'.” Em 1942 ocorreram atos de
violência contra indivíduos e depredação em várias cidades, em particular
Pelotas e Porto Alegre, contra estabelecimentos de alemães. E não foi só.
Segundo Gertz,
"Há relatos de que policiais
e patriotastros passavam pela colônia intimidando seus habitantes a comprar
fotos de personalidades brasileiras, a preços exorbitantes. São folclóricos os
confiscos de rádios, livros e discos como supostos instrumentos de divulgação
do nazismo, mas também foram confiscados, com muita frequência, objetos que não
tinham qualquer conotação política, ideológica ou fossem específicos de
determinada 'etnia' (como livros de arte e coleções de selos), isso sem falar
no confisco de motocicletas, que, no mesmo dia, foram vendidas a terceiros
pelos policiais que as haviam tomado a seus proprietários. As sociedades
recreativas e culturais, muitas vezes, foram encampadas pelo Estado, passando a
abrigar forças policiais ou militares destinadas a garantir o processo de
'nacionalização'. Perseguições e torturas físicas e psíquicas por parte da
polícia ocorreram em grande quantidade, incluindo algumas mortes. [...] Ainda
que não constituíssem locais de internamento em massa – como os campos de
concentração na Alemanha –, houve locais de confinamento para 'súditos do Eixo'
pelo Brasil todo, do Pará ao Rio Grande do Sul. [...] A intensidade da
violência institucionalizada ou praticada por cidadãos à revelia do aparelho de
Estado era influenciada pelas situações locais, dependendo da capacidade das
lideranças do lugar para contornar, ou não, enfrentamentos, mas também da
postura das autoridades. [...] Os efeitos da guerra sobre a população de origem
alemã no Rio Grande do Sul se estendem até os dias de hoje, quando não só a
opinião pública, o senso comum, mas até agentes de Estado partem do pressuposto
aparentemente óbvio de que um fenômeno chamado 'neonazismo' só pode ser produto
exclusivo da colônia alemã".
Além disso, em meados do século
mudavam as ênfases econômicas e a cultura nacional se diversificava sob a
influência irresistível da globalização, da modernização e da cultura de massa.
As cidades alemãs mais prósperas e industrializadas inchavam com grandes levas de
emigrados de diferentes partes do estado e do país, muitos deles exilados do
campo pela crise no setor agrícola, que chegavam em busca de oportunidades de
trabalho. Grande parte dessa população nova tinha outras origens étnicas e
culturais, não falava alemão e pouco se interessava pela sua história, trazia
outros passados, tinha outras necessidades. Todos esses fatores concorreram
para abalar a construção identitária da comunidade, até então largamente
baseada na germanidade, e concorreram para que o legado alemão fosse cercado de
preconceitos ou de indiferença.
Uma retomada no discurso
afirmativo ocorreu ao longo das comemorações dos 150 anos da colonização em
1974, quando muitas cidades promoveram festividades e publicações e fundaram
monumentos, ocorrendo ao mesmo tempo uma verdadeira explosão na bibliografia
acadêmica sobre a imigração, onde muitos antigos mitos foram derrubados e
outros aspectos foram reinterpretados, mas desde então a manutenção da
identidade sociocultural dos descendentes de alemães, bem como a recuperação da
sua herança histórica, sua memória oral e seu patrimônio material, têm sido
processos complexos, negociados com dificuldade entre os diferentes setores da
sociedade gaúcha, hoje tão diversificada e cosmopolita e tão diferente do que
foi no século XIX e mesmo no século XX.
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