A PANDEMIA DA GRIPE ESPANHOLA

A PANDEMIA DA GRIPE ESPANHOLA

A gripe espanhola, também conhecida como gripe de 1918, foi uma vasta e mortal pandemia do vírus influenza. De janeiro de 1918 a dezembro de 1920, infectou uma estimativa de 500 milhões de pessoas, cerca de um quarto da população mundial na época. Estima-se que o número de mortos esteja entre 17 milhões e 50 milhões, e possivelmente até 100 milhões, tornando-a uma das epidemias mais mortais da história da humanidade. A gripe espanhola foi a primeira de duas pandemias causadas pelo influenzavirus H1N1, sendo a segunda ocorrida em 2009.

Para manter o ânimo, os censores da Primeira Guerra Mundial minimizaram os primeiros relatos de doenças e sua mortalidade na Alemanha, Reino Unido, França e Estados Unidos. Os artigos eram livres para relatar os efeitos da pandemia na Espanha, que se manteve neutra, como a grave enfermidade que acometeu o rei Afonso XIII. Tais artigos criaram a falsa impressão que a Espanha estava sendo especialmente atingida. Consequentemente, a pandemia se tornou conhecida como "gripe espanhola". Os dados históricos e epidemiológicos são inadequados para identificar com segurança a origem geográfica da pandemia, com diferentes pontos de vista sobre sua origem.

A maioria dos surtos de gripe mata desproporcionalmente os mais jovens e os mais velhos, com uma taxa de sobrevivência mais alta entre os dois, mas a pandemia de gripe espanhola resultou em uma taxa de mortalidade acima do esperado para adultos jovens. Os cientistas ofereceram várias explicações possíveis para esta alta taxa de mortalidade de 2 a 3%.Algumas análises mostraram que o vírus foi particularmente mortal por desencadear uma tempestade de citocinas, que destrói o sistema imunológico mais forte de adultos jovens. Por outro lado, uma análise de 2007 de revistas médicas do período da pandemia descobriu que a infecção viral não era mais agressiva que as estirpes anteriores de influenza. Em vez disso, asseveraram que a desnutrição, falta de higiene e os acampamentos médicos e hospitais superlotados promoveram uma superinfecção bacteriana, responsável pela alta mortalidade.

As tropas britânicas e o acampamento hospitalar em Étaples, na França, foram teorizados por pesquisadores como estando no centro da gripe espanhola. A pesquisa foi publicada em 1999 por uma equipe britânica liderada pelo virologista John Oxford. No final de 1917, militares patologistas relataram o aparecimento de uma nova doença com alta mortalidade que mais tarde reconheceram como gripe. O acampamento e o hospital superlotados eram o local ideal para a propagação de um vírus respiratório. O hospital tratou milhares de vítimas de ataques químicos e outras causalidades, e 100 000 soldados atravessavam o acampamento todos os dias.

O local utilizado pelos britânicos em Étaples também era o lar de uma pocilga, e as aves eram trazidas das aldeias vizinhas de forma regular para serem utilizadas como suprimentos. Oxford e sua equipe postularam que um vírus precursor significativo, alojado em pássaros, sofreu mutação e depois migrou para porcos mantidos perto da frente. Em 2016, um relatório publicado no Jornal da Associação Médica Chinesa encontrou evidências de que o vírus de 1918 circulava nos exércitos europeus por meses e possivelmente anos antes da pandemia de 1918

Houve alegações de que a pandemia se originou nos Estados Unidos. O historiador Alfred W. Crosby afirmou em 2003 que a gripe se originou no Kansas, e o popular autor John Barry descreveu o Condado de Haskell, Kansas, como o ponto de origem em um artigo em 2004. Também foi declarado pelo historiador Santiago Mata em 2017 que, no final de 1917, já havia uma primeira onda da epidemia em pelo menos 14 campos militares dos Estados Unidos.

Um estudo de 2018 com lâminas de tecido e relatórios médicos liderado pelo professor de biologia evolutiva Michael Worobey encontrou evidências contrárias à hipótese da doença ter se originado no Kansas, pois os casos no local eram mais leves e ocorreram menos mortes em comparação com a situação na cidade de Nova Iorque no mesmo período. O estudo encontrou evidências através de análises filogenéticas de que o vírus provavelmente tinha uma origem norte-americana, embora não fosse conclusivo. Ademais, as glicoproteínas da hemaglutinina do vírus sugerem que isso ocorreu muito antes de 1918 e outros estudos sugerem que o rearranjo do vírus H1N1 provavelmente ocorreu em ou por volta de 1915.

Quando uma pessoa infectada espirra ou tosse, mais de meio milhão de partículas do vírus podem se espalhar para as pessoas próximas. Os locais próximos e as mudanças maciças de tropas durante a Primeira Guerra Mundial aceleraram a pandemia e provavelmente aumentaram a transmissão e as mutações. A guerra também pode ter aumentado a letalidade do vírus: alguns especulam que o sistema imunológico dos soldados foi enfraquecido pela desnutrição, bem como pelo estresse dos combates e ataques químicos, aumentando sua suscetibilidade. Ademais, um grande fator na ocorrência mundial da gripe foi o aumento do número de viagens. Os modernos sistemas de transporte facilitaram a disseminação da doença por soldados, marinheiros e viajantes civis.

Nos Estados Unidos, a doença foi observada pela primeira vez no condado de Haskell, Kansas, em janeiro de 1918, levando o médico local Loring Miner a avisar o diário acadêmico do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos. Em 4 de março de 1918, o cozinheiro Albert Gitchell, do condado de Haskell, relatou estar doente em Fort Riley, uma instalação militar dos Estados Unidos que na época treinava tropas norte-americanas durante a Primeira Guerra Mundial, fazendo dele a primeira vítima registrada da gripe. Em questão de dias, 522 homens no campo declararam estar doentes. Em 11 de março de 1918, o vírus chegou ao Queens, Nova Iorque. A falta de medidas preventivas em março e abril foi posteriormente criticada.

Em agosto de 1918, uma estirpe mais virulenta apareceu simultaneamente em Brest (França), Freetown (Serra Leoa) e em Boston (Massachusetts). A gripe espanhola também se espalhou pela Irlanda, transportada para lá por soldados irlandeses que retornavam para a casa. Os Aliados da Primeira Guerra Mundial passaram a chamá-la de gripe espanhola, principalmente porque a pandemia recebeu maior atenção da imprensa depois que se moveu da França para a Espanha em novembro de 1918. Por ter relações familiares em ambos os lados envolvidos no conflito, o rei Afonso XIII optou por deixar a Espanha neutra, evitando a censura de guerra no país.

A epidemia chegou ao Brasil em setembro de 1918: o navio inglês "Demerara", vindo de Lisboa, desembarcou doentes no Recife, em Salvador e no Rio de Janeiro (então capital federal). No mesmo mês, marinheiros que prestaram serviço militar em Dakar, no Senegal, desembarcaram doentes no porto de Recife. Em pouco mais de duas semanas, surgiram outros focos em diversas cidades do Nordeste e em São Paulo.

A pandemia matou principalmente adultos jovens. Em 1918-1919, 99% das mortes por influenza pandêmica nos Estados Unidos ocorreram em pessoas com menos de 65 anos e quase metade dos falecidos eram adultos jovens de 20 a 40 anos. Em 1920, a taxa de mortalidade entre pessoas com menos de 65 anos havia diminuído em relação a pessoas com mais de 65 anos, mas 92% das mortes ainda ocorreram em pessoas com menos de 65 anos. A ocorrência era incomum, uma vez que a gripe normalmente é mais fatal para indivíduos fracos, como crianças com menos de dois anos de idade, adultos com mais de 70 anos e imunodeficientes. Em 1918, os idosos podiam ter contado com proteção parcial causada pela exposição à pandemia de gripe de 1889 a 1890, conhecida como "gripe russa".

Segundo o historiador John M. Barry, as mais vulneráveis de todas – "as mais prováveis" – a morrer foram as mulheres grávidas. Barry relatou que em treze estudos com mulheres hospitalizadas na pandemia, a taxa de mortalidade variou de 23% a 71%. Das gestantes que sobreviveram ao parto, mais de um quarto (26%) perderam seus filhos.

Em casos de rápido progresso da gripe, a mortalidade foi principalmente gerada pela pneumonia, por consolidação pulmonar induzida por vírus. Casos de menor evolução apresentaram pneumonia bacteriana secundária e, possivelmente, envolvimento neural que levou a distúrbios mentais em alguns casos. Algumas mortes ocorreram por conta da desnutrição.

A análise moderna indicou que o vírus foi particularmente mortal por desencadear uma tempestade de citocinas (reação exagerada do sistema imunológico do corpo), que destrói o sistema imunológico mais forte dos adultos jovens. Um grupo de pesquisadores recuperou o vírus dos corpos de vítimas congeladas e transfectou animais com ele. Os animais sofreram rapidamente de forma progressiva insuficiência respiratória e morreram por tempestade de citocinas. Postulou-se que as fortes reações imunes de adultos jovens haviam devastado seus corpos, enquanto que as reações imunológicas mais fracas de crianças e adultos de meia idade resultaram em menos mortes entre esses grupos.

Um estudo de 2013 utilizou um modelo epidêmico simples, incorporando três fatores para inferir a causa das três ondas da pandemia. Esses fatores foram abertura e fechamento de escolas, mudanças de temperatura durante o surto e mudanças comportamentais humanas em resposta a este. As conclusões mostraram que todos os três fatores foram importantes, mas as respostas comportamentais humanas representaram os efeitos mais significativos.

A segunda onda da pandemia de 1918 foi muito mais mortífera que a primeira. A primeira onda se assemelhava às epidemias típicas de gripe; os que estavam em maior risco eram os doentes e os idosos, enquanto que as pessoas mais jovens e saudáveis se recuperavam facilmente. Em agosto, quando a segunda onda começou na França, Serra Leoa e Estados Unidos, o vírus havia se transformado em uma forma muito mais mortal. Outubro de 1918 foi o mês mais mortal de toda a pandemia, ocasionando 195 mil mortes só nos Estados Unidos.

A maior gravidade foi atribuída às circunstâncias da guerra. Na vida civil, a seleção natural favorece um leve desgaste. Os muito adoentados permanecem em suas casas e os que estão levemente doentes continuam com suas vidas. Nas trincheiras, a seleção natural foi revertida. Soldados com um leve desgaste permaneceram onde estavam, enquanto os gravemente enfermos foram enviados em trens lotados para hospitais de campo lotados, espalhando o vírus mais mortal. A segunda onda começou e a gripe rapidamente se espalhou pelo mundo novamente. Consequentemente, durante as pandemias modernas, as autoridades de saúde prestam atenção quando o vírus chega a lugares com convulsões sociais.

O fato de a maioria das pessoas que se recuperaram de infecções da primeira onda terem se tornado imunes revelou que a estirpe da gripe espanhola deve ter sido a mesma da gripe comum. Isso foi ilustrado de maneira mais dramática em Copenhague, que obteve uma taxa de mortalidade combinada de apenas 0,29% (0,02% na primeira onda e 0,27% na segunda onda) devido a exposição à primeira onda menos letal.Para o resto da população, a segunda onda foi muito mais mortal; as pessoas mais vulneráveis eram aquelas como os soldados nas trincheiras – adultos jovens e em boa forma.

Mesmo em áreas onde a mortalidade foi baixa, tantos adultos estavam incapacitados que grande parte da vida cotidiana era prejudicada. Algumas comunidades fecharam todas as lojas ou exigiram que os clientes deixassem seus pedidos do lado de fora. Houve relatos de que os profissionais de saúde não podiam cuidar dos doentes, nem os coveiros enterrar os mortos pois eles também estavam doentes. Sepulturas em massa foram cavadas e os corpos enterrados sem caixões em muitos lugares.

Vários territórios do Pacífico foram particularmente atingidos com força. A pandemia chegou na Nova Zelândia, que foi muito lenta para implementar medidas para impedir que navios transportassem a gripe ao deixar seus portos. Da Nova Zelândia, a gripe atingiu Tonga (matando 8% da população), Nauru (16%) e Fiji (5%, 9 000 pessoas). Na Nova Zelândia, 8 573 mortes foram atribuídas à gripe pandêmica de 1918, resultando em uma taxa de mortalidade total da população de 0,7%. Os maoris tinham dez vezes mais chances de morrer do que os europeus, por causa de sua habitação e população rural mais pobres e mais lotadas.

A Samoa Ocidental foi a mais afetada, anteriormente Samoa Alemã, que havia sido ocupada pela Nova Zelândia em 1914. Lá, 90% da população foi infectada; 30% dos homens adultos, 22% das mulheres adultas e 10% das crianças morreram. O governador da Samoa Americana, John Martin Poyer, impediu que a gripe chegasse ao território ao impor um bloqueio.A doença se espalhou mais rapidamente através das classes sociais mais altas entre os povos indígenas graças ao costume dos chefes de recorrerem a tradição oral em seus leitos de morte; muitos idosos foram infectados por esse processo.

Depois que a segunda onda letal ocorreu no final de 1918, novos casos caíram abruptamente – quase nenhum depois do pico da segunda onda. Na Filadélfia, Pensilvânia, por exemplo, 4.597 pessoas morreram na semana que terminou em 16 de outubro, mas em 11 de novembro a gripe quase desapareceu na cidade. Uma explicação para o rápido declínio da letalidade da doença é que os médicos se tornaram mais eficazes na prevenção e tratamento da pneumonia que se desenvolveu após as vítimas terem contraído o vírus. No entanto, John Barry afirmou em seu livro The Great Influenza: The Epic Story of the Deadliest Plague In History, publicado em 2004, que os pesquisadores não encontraram evidências para apoiar essa posição.

Outra teoria sustenta que o vírus sofreu uma mutação extremamente rápida para uma estirpe menos letal. Essa é uma ocorrência comum com os vírus influenza: existe uma tendência de os vírus patogênicos se tornarem menos letais com o tempo, pois os hospedeiros de estirpes mais perigosas tendem a morrer.

 

 

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