O MODELO ESTANCIEIRO E A FORMAÇÃO DO GAÚCHO

O MODELO ESTANCIEIRO E A FORMAÇÃO DO GAÚCHO

Com a paz de Santo Ildefonso se intensificou a concessão de sesmarias aos que se haviam destacado na guerra, e esta classe de militares, agora donos de terras, foi a origem da aristocracia pastoril gaúcha, consolidando o regime das estâncias como uma das bases econômicas da região, mas dando margem também a uma grande quantidade de abusos de poder, que tinham seu fundamento na realidade de um grupo que se experimentara a ferro e fogo, mas para quem o senso de justiça, lei e humanidade estava morto. Os próprios administradores régios davam péssimo exemplo, enriquecendo à custa da província e acumulando vastas extensões de terras. Cada grande sesmeiro era como um poderoso senhor feudal que atendia primariamente aos seus interesses e os impunha pela força. Repetidas vezes as queixas chegaram à Coroa, mas sempre com pouco resultado. A vida na estância era precária em todos os sentidos. Somente os senhores podiam ter algum luxo numa casa grande, que mais se parecia a uma fortificação, com paredes grossas e grades nas janelas. Em torno dela se agrupavam a senzala e famílias livres, que vinham em busca de proteção e recebiam uma porção de terra em troca de um compromisso de fidelidade servil para com o proprietário, produzindo alimentos e bens manufaturados para seu sustento próprio mas sobretudo para o patrão. A habitação desses agregados era um sumário casebre de barro coberto de palha, despojado de todo conforto. Um relato de época, deixado por Felix Azara, descreve o ambiente:

"Possuem um barril para a água, uma guampa para o leite e um espeto para assar a carne. A mobília não vai além de umas três peças. As mulheres andam descalças, sujas e andrajosas. Seus filhos se criam vendo somente rios, desertos, homens vagos correndo atrás das feras e touros, matando-se friamente como se degolassem uma vaca".

Apesar dos problemas gerados pela liberdade de ação quase irrestrita dos grandes estancieiros, a Coroa portuguesa precisava deles para garantir a ocupação do território, que vivia em um estado de tensão militar crônica em vista da situação rio-grandense como uma fronteira instável, sendo necessários como fornecedores de dinheiro, carretas, cavalos, gado e soldados e outros bens imprescindíveis para a sustentação da atividade militar. Ao mesmo tempo, a guerra abria para os estancieiros oportunidades de enriquecimento e aumento de poder através da expansão territorial e captura ou contrabando dos rebanhos de gado que ainda viviam livres. Numa província cuja população era maciçamente rural, esse contexto formou uma sociedade eminentemente militarizada.

Muitas estâncias produziam uma variedade considerável de produtos agrícolas e de uma indústria primitiva, tornando a propriedade autossuficiente e aliviando um pouco a pobreza do grosso da população. Havia momentos de entretenimento nos bolichos, pequenas casas de comércio, bebida e encontro social masculino de beira de estrada, e as festas religiosas na capela local congregavam toda a pequena comunidade e atraíam grupos de outras estâncias. Nesses encontros começou a se formar o folclore do Rio Grande do Sul, na contação de causos (relatos de façanhas e fatos extraordinários) em torno do fogo, nas carreiras de cavalos, na troca de experiências sobre a vida campeira, na absorção e transformação dos mitos indígenas locais.

O empregado da estância foi, assim, um dos formadores da figura prototípica do gaúcho, uma figura que na verdade foi "construída" pela intelectualidade local no século XX, mas que hoje é a inspiradora de parte importante da cultura do estado e do seu senso de identidade. Outra parte do caráter total dessa entidade abstrata, uma parte que diz respeito à insubmissão e liberdade, foi emprestada do povo errante de homens sem lei, formado por índios evadidos das missões, contrabandistas, caçadores de couros, aventureiros, escravos e bandidos foragidos, que percorriam em predação os campos de gado livre. Diversos nomes se deram a essa população, entre eles faeneros, corambreros, índios vagos, gaudérios, guascas e gaúchos. Viviam em bandos por conta própria, comendo carne e bebendo mate e aguardente, vestidos de uma indumentária simples e adaptada à vida constante sobre um cavalo, enfrentando dias de intenso frio nos invernos, tendo de dormir via de regra a céu aberto. Eram sempre um perigo para os estancieiros, especialmente os mais pobres, e constantemente se envolviam em rusgas com os espanhóis na fronteira. Suas relações com os oficiais do reino eram ambíguas. Por um lado competiam na presa do gado solto, mas também podiam ser contratados para fazerem o mesmo serviço para um senhor ou prestar tarefas militares junto a um destacamento oficial. Em 1803 seu número chegava a quatro mil, numa população total de 30 mil habitantes.

Até então o interesse dos colonizadores pelo gado se resumia ao couro, que era de grande importância na vida cotidiana da colônia. A carne era apenas para uso familiar, e todo o excedente era desprezado. Calcula-se que o rebanho livre tenha chegado a cerca de 48 milhões de reses e um milhão de cavalos. Depois de 1780 o gado livre começou a rarear, mas então se abriu um novo e amplo mercado para a carne que era descartada, iniciando a cultura das charqueadas, cujo produto seguia para o Nordeste a fim de alimentar os escravos dos engenhos de açúcar.

 

 

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