O RIO GRANDE DO SUL PÓS REVOLUÇÃO FARROUPILHA

O RIO GRANDE DO SUL PÓS REVOLUÇÃO FARROUPILHA

Ainda que gravemente traumatizado pela guerra, com suas perdas humanas e materiais e suas rupturas nas redes de confiança mútua que cimentam a vida em sociedade, a recuperação do estado foi bastante rápida. A situação nacional era favorável. O governo de Dom Pedro II pela primeira vez trabalhava em superávit, e o monarca desejava pacificar os ânimos locais. Com a restauração das instituições incentivou-se a instalação de Câmaras em várias cidades e a administração da justiça se normalizou. As maiores urbanizações receberam verbas para melhorar a infraestrutura e os serviços públicos, a lagoa dos Patos foi sinalizada, se formaram várias associações de comerciantes e produtores, novas levas de imigrantes alemães foram chegando, a mineração do carvão se desenvolvia e já se pensava em estradas de ferro para escoar a produção estadual e circular pessoas. Em 1851 o estado recebeu um desenho muito próximo do atual, com a retificação das fronteiras com a República do Uruguai. Em 1854 já havia condições de se fundar o primeiro banco regional, o Banco da Província.

A repercussão cultural desse surto de progresso também foi significativa. Em 1858 Porto Alegre inaugurava uma grande casa de ópera, o Theatro São Pedro, decorado com grande riqueza. Os saraus literários se tornavam uma moda, e na capital se fundava em 1868 a Sociedade Parthenon Litterario, reunindo a nata da intelectualidade gaúcha. Nesse círculo brilharam os primeiros literatos, educadores, políticos, doutores, artistas e poetas de vulto do estado, como Luciana de Abreu, Caldre e Fião, Múcio Teixeira, Apolinário Porto Alegre, Carlos vonKoseritz e vários outros.

 

A instalação dos novos imigrantes alemães, que continuavam a chegar, porém, se fazia com mais dificuldade. Mudanças nas leis estaduais tornaram a aquisição de terra onerosa para os colonos e impuseram uma hipoteca compulsória sobre as terras até sua quitação, e iniciativas privadas de atração de novos alemães nem sempre foram coroadas de sucesso. Também se registraram confrontos sangrentos com remanescentes dos povos indígenas nas áreas desbravadas, e eventos de violência entre os próprios alemães, como a Revolta dos Muckers, de caráter messiânico. Mesmo assim, a colonização como um todo prosperou, trouxe as culturas da batata, dos cítricos, do fumo, introduziu a cerveja, promoveu a industrialização, o artesanato, a educação privada e a policultura, e fundou uma série de outras cidades, como Estrela, São Gabriel, Taquara, Teutônia e Santa Cruz do Sul, que logo veio a ser o maior pólo produtor de fumo. Além disso os alemães logo se organizaram em sociedades culturais onde se praticava música erudita e se encenavam peças de teatro, e se notabilizaram por sua luta pela liberdade religiosa e pela abolição da escravatura.

Em 1864, nova guerra. Desta feita contra o Paraguai. O Brasil fora invadido por Solano Lopez e o estado enviou mais de dez mil homens para a frente de batalha. A Guerra do Paraguai afetou diretamente apenas três cidades gaúchas: São Borja, Itaqui e Uruguaiana, que foram atacadas várias vezes, mas depois de um ano o conflito direto se moveu para outros locais, e o estado como um todo foi relativamente pouco abalado. Mas graças à atuação destacada do gaúcho General Osório no conflito, o prestígio do estado cresceu sensivelmente. Ele foi um dos fundadores do Partido Liberal no estado, que iniciou a partir de 1872 uma marcha ascendente até enfim dominar a situação política gaúcha. Com sua morte abriu-se espaço para outra personalidade brilhante, o de início liberal mas depois monarquista Gaspar da Silveira Martins, criador do jornal A Reforma e ocupante de vários cargos públicos, incluindo o de Presidente da Província. Ele seria chamado de "o dono do Rio Grande", tal sua influência.

A partir de 1874 o trem já circulava entre a capital e São Leopoldo, dando a partida para a modernização dos meios de transporte no Rio Grande do Sul.[3] O ano de 1875 também assinala a chegada das primeiras levas de imigrantes italianos, em novo projeto oficial de colonização, a serem instalados na Serra do Nordeste, ao norte da área ocupada pelos alemães. Antecedendo a ocupação italiana da área, os índios caingangues que a habitavam foram submetidos a novo genocídio pelos chamados "bugreiros", pistoleiros contratados especialmente para "abrir espaço" para os imigrantes.

Apesar das previsíveis dificuldades de ocupação de uma região ainda totalmente virgem, e do limitado apoio governamental aos colonos, o empreendimento foi exitoso, e até o final do século chegariam ao estado cerca de 84 mil italianos, além de grupos menores de judeus, polacos, austríacos e outras etnias. Através dessa nova onda imigratória se fundaram cidades como Caxias do Sul, Antônio Prado, Nova Pádua, Bento Gonçalves, Nova Trento e Garibaldi, e se introduziram produções novas como a uva, os embutidos e o vinho. Como acontecera com os alemães, criou-se na região uma cultura muito próspera e muito característica, até com dialeto, hábitos e arquitetura próprios. O estado atravessava uma fase de real florescimento, já havia cerca de 100 tipos de indústrias em atividade, que evoluíram a partir de artesanatos e manufaturas, e em 1875 a sociedade se sentiu capaz de exibir publicamente o resultado de seu esforço numa primeira exposição geral, montada no Arsenal de Guerra de Porto Alegre. No catálogo da mostra constavam 558 produtos, desde roupas, maquinário pesado e instrumentos de precisão até relógios e obras de arte. O evento foi um sucesso absoluto, saudado como "um festim do trabalho" pela imprensa da época.

Mesmo com o crescimento de várias cidades, principalmente Porto Alegre, Pelotas passou a ocupar a posição de predomínio econômico no estado, quando o ciclo do charque entrava em seu apogeu. Cerca de 300 mil reses eram abatidas anualmente nas charqueadas da região, gerando grandes lucros para a elite local. O charque se transformava em pinturas, louças finas, roupas da última moda francesa, cristais, móveis de luxo, casas elegantes. Nos jornais os cronistas se orgulhavam de em sua cidade nem um único edifício público ter sido pago pelo governo estadual, sendo tudo financiado pelos locais. Em visita à cidade, o Conde D'Eu observou: "É Pelotas a cidade predileta do que eu chamo de aristocracia rio-grandense. Aqui é que o estancieiro, o gaúcho cansado de criar bois e domar cavalos no interior da Campanha, vem gozar as onças e os patacões que ajuntou em tal mister".[3] Apesar do progresso que proporcionou, a indústria do charque impunha sobre os trabalhadores, quase todos escravos, uma jornada exaustiva, insalubre e degradante. Segundo Ester Gutierrez, "além de toda a rudeza do trabalho e do tratamento dado à população servil, do mau cheiro continuamente reinante, da sujeira e da presença de feras e animais peçonhentos e pestilentos, o espaço interno da produção do charque acompanhava o quadro macabro, tétrico, fétido e pestífero que dominava o seu meio ambiente".

Enquanto esse ciclo econômico continuava, na política a situação começava a mudar. Em 1881 voltou à sua terra natal um grupo de jovens liderado por Júlio de Castilhos, depois de temporada de estudos em São Paulo, onde entraram em contato com ativos intelectuais e com a filosofia positivista. A campanha abolicionista ganhava as ruas e Castilhos assumiu imediatamente a dianteira do movimento, ao mesmo tempo em que criava um Partido Republicano diferenciado, o Partido Republicano Rio-grandense (PRR), inspirado no Positivismo, cujo porta-voz foi o influente jornal A Federação. A partir de 1884, por iniciativa do Centro Abolicionista do Parthenon Literário, contando com a decisiva mobilização do PRR, outros partidos e grandes segmentos da sociedade, conseguiu-se iniciar um processo de libertação dos cerca de oito mil escravos do estado, quatro anos antes da proclamação da Lei Áurea. Os libertos, contudo, não encontrariam facilmente uma colocação no mercado de trabalho, reunindo-se em guetos e vilas, sofrendo privações e discriminações de toda ordem, e obtendo apenas tarefas de baixa remuneração.

Na alvorada da República Júlio de Castilhos assumiu a secretaria do governo e em seguida participou no Rio da elaboração da nova Constituição. Voltando ao estado em 1891, passou a trabalhar na Constituição Estadual. Aprovada em 14 de julho, no mesmo dia se realizou a primeira eleição para uma Presidência constitucional, saindo-se Castilhos vencedor com 100% dos votos. Mas as rivalidades políticas se acirraram a um ponto sem retorno. O Partido Federalista (antigo Partido Liberal) lutava pela centralização e o parlamentarismo; o Partido Republicano, pelo sistema presidencialista e pela autonomia provincial. Depois de várias mudanças de governo deflagrou-se uma nova guerra civil em 1893, a Revolução Federalista, liderada por Silveira Martins, antigo adversário de Castilhos, que estava de novo no poder. Se na Revolução Farroupilha ainda se viram cenas de nobreza, honra e altruísmo, ao longo da Revolução Federalista generalizou-se a crueldade e a vilania. Décio Freitas diz que foi a mais violenta das guerras civis em toda a América Latina, e outros que escreveram sobre ela não cessam de reiterar expressões de horror. Durou mais de dois anos e ceifou mais de dez mil vidas, imprimindo uma nódoa de ódio fratricida que até hoje envergonha a memória do estado.

Com a derrota dos rebeldes em 1895, Júlio de Castilhos concentrou em si o controle absoluto do estado. A oposição se viu completamente desarticulada e os principais líderes dos revoltosos ou estavam mortos ou partiram para o exílio, acompanhados por cerca de 10 mil correligionários. Então se iniciou uma longa dinastia política que iria governar o estado por décadas, e influenciaria todo o Brasil através de um de seus discípulos, Getúlio Vargas. Castilhos controlava toda a máquina administrativa estadual através de uma rede de subordinados fiéis, interferindo diretamente na vida dos municípios. Adepto entusiasta do Positivismo, orientou sua administração por suas ideias de ordem, moralidade, civilização e progresso, mas dava pouco valor à opinião popular, como se revela no seu desprezo do voto, sendo repetidamente acusado de fraudar as eleições. Por seu círculo ele era visto como um iluminado, e mesmo exercendo um poder ditatorial, relevou antigas ofensas e não perseguiu seus desafetos, nem obstruiu o trabalho da imprensa, permitindo considerável liberdade de expressão. Seu carisma pessoal era forte e seu governo chegou a ser elogiado até por seus oponentes, como Venceslau Escobar, que admirou-se de sua "largueza de descortino, realizando e projetando medidas progressistas". De fato, com ele o estado entrou definitivamente na modernidade, atualizando uma herança administrativa colonial obsoleta que até então fora baseada mais no improviso. Sua primeira preocupação foi reorganizar a justiça, os transportes e as comunicações. Apoiou os imigrantes e fomentou o desenvolvimento do interior. Em 1898, deixou o governo assegurando a continuidade do seu programa através da eleição de Borges de Medeiros num pleito sem adversários.

 

 

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