A QUARTA ONDA DO FEMINISMO

A QUARTA ONDA DO FEMINISMO

O desenvolvimento da internet e das redes sociais afetaram a forma como os indivíduos percebem a si mesmos e o mundo ao seu redor. Com as novas tecnologias de comunicação em massa, os relacionamentos, o consumo, o trabalho e muitas outras dimensões da vida humana foram repensadas e modificadas. E os movimentos sociais não ficaram de fora. Pode-se dizer que as novas ferramentas de propagação de ideias e conexões entre pessoas remodelaram o que se entende por movimento social hoje em dia e, principalmente, as formas pelas quais eles atuam e se organizam.  

Esse é o caso do movimento feminista. Assim como outros movimentos sociais, a luta das mulheres passou por mudanças relevantes com a popularização da internet e das redes sociais. Por isso, alguns estudiosos defendem que o feminismo no século XXI já não é mais como o das décadas de 60, 80 ou 90, mas representa uma nova fase do movimento, a chamada quarta onda feminista.

Desde meados da década de 1980 e, especialmente da década de 1990 em diante, já se falava no impacto da internet no movimento feminista, responsável pela emergência de um ciberativismo feminista, ou seja, um ativismo feminista por meio da web. A obra “Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”, da filósofa Donna Haraway, publicada em 1985, já apontava para a crise dos movimentos sociais enquanto potência de agregação e difusão de identidades e destacava a internet como uma nova forma de expressão e reconhecimento destas. Para a  autora, então, em face a um enfraquecimento dos movimentos sociais tradicionais, a internet estava se tornando uma nova forma de difusão de valores caros à luta social, como as identidades de gênero e raciais, por exemplo.

O potencial da web, apontado pela autora, pôde ser verificado com o ciberfeminismo se espalhando pelo mundo nos anos seguintes, inclusive na forma da I Internacional Ciberfeminista, realizada na Alemanha em 1997.

No Brasil, esse movimento começou a ser visualizado também a partir dos anos 1990 com a chegada da internet no país, de forma que organizações, especialmente ONGs e órgãos públicos, passaram a também fazer uso da ferramenta como forma de articulação. Contudo, vale destacar que foi apenas a partir dos anos 2000, com a popularização da internet e a chegada da conexão banda larga aos lares brasileiros, que o que entendemos hoje como ciberfeminismo começou a criar suas bases no país.

Com a popularização da internet e sua ocupação por feministas, ocorreu a massificação do debate acerca das ideias do movimento, o que contribuiu para um fortalecimento da identidade feminista. Isso porque tornou possível que mulheres de diferentes origens, classes sociais, raças/etnias e religiões pudessem conhecer e se reconhecer nas pautas defendidas pelo movimento. Assim, como explica a autora Zeila Aparecida Dutra, a partir desse processo foi possível uma difusão do movimento e a desconstrução de estereótipos negativos acerca das feministas.

Ainda, como aponta a professora e pesquisadora Fabiana Martinez (2019, p. 10), houve um aumento de 10% no contingente de brasileiras que se reconheciam como feministas entre os anos de 2001 e 2010, sendo a maioria jovem. Desse modo, pode-se dizer que a internet, por proporcionar novas formas de pensar e atuar no social, tornou o feminismo mais atrativo para as novas gerações, dando à causa um maior poder de penetração na sociedade como um todo e quebrando a lógica da institucionalização da terceira onda. Isso quer dizer que já não era mais necessário estar vinculado a uma entidade, ONG ou movimento para entrar em contato com as pautas feministas, se identificar com elas e se manifestar.

Sendo assim, o ciberativismo feminista é fruto da tomada das redes por jovens militantes que já cresceram em meio às inovações digitais e as dominam (PEREZ; RICOLDI, 2019, p. 9) . Nesse sentido, as redes sociais na internet, que se popularizaram no Brasil a partir dos anos 2010, potencializaram a importância da internet para o ciberfeminismo, tornando-se mais do que meio de articulação de feministas que já se identificavam com a causa antes das redes, mas criando uma forma completamente nova de atuação e consolidação do movimento.

Desse modo, como apontam as pesquisadoras Olívia Cristina Perez e Arlene Ricoldi (PEREZ; RICOLDI, 2019, p. 8), pode-se destacar como principais características da quarta onda do feminismo brasileiro:

uma desinstitucionalização em relação à terceira onda: ou seja, uma menor presença do feminismo em instituições estatais, ONGs ou entidades de movimento social e maior difusão na sociedade civil, fortemente influenciada pela internet;

a horizontalidade: uma vez fora das instituições e organizações, existem menos hierarquias dentro do movimento e, assim, uma maior autonomia e pulverização das ativistas;

a organização em grupos e coletivos: de caráter mais informal que as entidades tradicionais de movimento social, os grupos em redes sociais e coletivos de faculdade, por exemplo, são formas encontradas pelas feministas do século XXI de se organizar sem perder a horizontalidade e ganhando a interação e o apoio da coletividade;

o retorno às ruas: na segunda e terceira ondas respectivamente, os debates feministas passaram a ocupar a Academia e as instituições governamentais. Assim, o movimento se afastou das manifestações de rua e passou a se concentrar nesses espaços, se distanciando das massas. Na quarta onda, por meio da internet e dos grupos e coletivos, há um retorno às manifestações de rua no movimento;

o caráter interseccional: como demonstra a pesquisa das autoras, ainda que muitos coletivos feministas na internet não se reconheçam como interseccionais nem façam menção ao termo em seu título, a discussão sobre a interseção entre a opressão de gênero e outras como a LGBTfobia, o racismo, o capacitismo e a gordofobia está muito presente em diversos grupos e páginas que se identificam com o feminismo hoje, sendo uma característica fundamental do movimento;

a divisão e disputa entre vertentes: apesar de discutirem constantemente sobre o tema da interseccionalidade, as feministas não concordam sempre em seus valores e estratégias de luta política. Dessa forma, muitas são as vertentes, ou seja, caminhos políticos que escolhem para entender o fenômeno da opressão de gênero na sociedade. As principais são: liberal, socialista e radical. Sendo assim, mais do que travar lutas específicas como ocorria nas outras ondas, no século XXI, as feministas estão retomando temas já discutidos no passado e disputando seu projeto de sociedade;

o caráter transnacional:  influenciado diretamente pelo uso dos sites de rede social, a quarta onda feminista pode ser entendida como um fenômeno global, já que, com essas ferramentas digitais, as discussões se tornam virais em tempo recorde.

Para além dessas características, o feminismo contemporâneo no Brasil tem também marcas próprias relacionadas ao contexto sociopolítico das últimas décadas. Dentre os mais importantes acontecimentos recentes que impactaram a reformulação do movimento no país está a sanção da Lei nº 12.711/2012, que implementou as cotas étinico-raciais nas instituições federais de ensino superior.

A partir desse momento, mulheres negras, indígenas e periféricas aumentaram seu acesso à universidade, o que proporcionou, no meio intelectual, uma discussão mais profunda de suas vivências, distintas da maioria branca e de classes média e alta que tradicionalmente ocupam esse ambiente:

A ampliação do ensino superior público nos últimos 10 anos e a adoção de cotas permitiram que alunos pobres e negros ingressassem na universidade, pautando assim o debate sobre suas dificuldades. Por outro lado, com o início da gestão Lula em 2003, foi intensificada a participação política de mulheres e LGBT’s no interior do Estado. O ativismo estatal e a maior participação de mulheres, negros e LGBT’s permitiu mais conhecimento e reconhecimento de suas lutas. Acrescenta-se a isso a intensa mobilização de movimentos negros, feministas e LGBT’s para que seus direitos sejam concretizados e as desigualdades superadas. (PEREZ; RICOLDI, 2019, p. 17

Dessa forma, o aumento da diversidade nas universidades afetou o feminismo acadêmico profundamente, inclusive porque muitos desses novos estudantes, reconhecendo o elitismo e o racismo do meio, fizeram uso da internet para criar uma rede de apoio e de compartilhamento de vivências. Assim, o conceito de interseccionalidade, proposto nos anos 1980 pela norte-americana Kimberlé Crenshaw (CRENSHAW, 2002), se popularizou na academia brasileira nos anos 2000, influenciando e sendo influenciado pelas discussões na web em coletivos, blogs e redes sociais.

A adoção de lutas interseccionais também tem relação com a internet, na medida em que no mundo digital são divulgados estudos sobre interseccionalidade, assim como reflexões acerca da importância do combate ao racismo e à homofobia (agora estendido também para a lesbofobia e LGBTfobia). Diante de tantas informações e denúncias de casos que envolvem preconceitos, as feministas vêm aderindo a novas causas. A maior democratização das informações possibilitada pela internet também permitiu a divulgação de ideias de mulheres negras e/ou mulheres lésbicas, contribuindo para a adoção das lutas interseccionais. (PEREZ; RICOLDI, 2019, p. 13)

https://www.politize.com.br/quarta-onda-do-feminismo/

 

 

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