O PRIMEIRO FILME
Um dos filmes da primeira sessão
do cinematógrafo, no Grand Café de Paris em 1895 é La sortie de l’usine Lumière
à Lyon (A saída da fábrica Lumière em Lyon). O curta mostra a saída dos
operários, no fim do expediente da fábrica de negativos fotográficos da família
Lumière, inventores da nova técnica. A cena parece um dia como qualquer outro:
o mesmo fim de trabalho, o mesmo portão, a mesma multidão. Poderíamos conceber
aquelas imagens como um exemplo daquela rotina. No entanto, o filme é o
registro de um dia específico onde uma câmera estava lá, operada pelos patrões
inventores- um instantâneo recorte da história que insistimos em tentar ler e
tocar.
Lá, vemos o deslocamento lateral
dos corpos da multidão, provavelmente dirigido, em uma imagem icônica da
modernidade. Também observamos uma maioria de mulheres, algumas bicicletas
saindo e um cachorro passando por acaso.
A industrialização capitalista
operou uma série de modificações na vida dos indivíduos, construindo, também, o
seu próprio tempo de existir cotidianamente e o seu próprio movimento de corpos
e máquinas, dentro das transformações do período histórico.
O dia-a-dia dos operários passa a
ser marcado por uma rígida rotina entre a casa, o meio de transporte e o trabalho,
com algumas interrupções nos estímulos e diversões da cidade. A lógica de
produção da fábrica, com a segmentação do trabalho na linha de produção e as
atividades repetidas em cada função são a representação máxima desta relação
temporal, assim como de seus movimentos. Portanto, como observar, ler ou
rememorar a história deste período e destas transformações?
Compreendendo a estrutura
material do sistema econômico em formação, vemos que aqueles trabalhadores
constituíam peças articuladas de uma engrenagem. Contudo, estes indivíduos
possuíam diferentes práticas e subjetividades dentro deste cotidiano, criando,
eles também, o universo objetivo e simbólico de seu tempo. Então, como
visualizar o instante para além das narrativas formadoras das histórias mais
gerais?
Podemos concordar com o fato de
que o operário vivia um cotidiano maquínico, como exigência do sistema onde
estava inserido. Mas, se pararmos apenas na constatação do eterno retorno do
mesmo dia, temos poucas ferramentas para observar além de elementos teóricos
gerais mais reconhecidos.
A nascente arte do cinema
permitia, potencialmente, novas formas de captar a história. Isto se dava na
eternidade de seu presente imagético e na multidimensionalidade dos elementos
percebidos, num instante onde a história se tornava visível, através da imagem
de cada “agora”. O cinema deve ser entendido não apenas como mais uma invenção
do fim do século 19, mas como uma expressão participante das transformações
técnicas e subjetivas da modernidade. Deste modo, a colaboração do
cinematógrafo, da fotografia e de outras inovações permitiu novas ferramentas
para as pulsões do conhecimento humano e para a compreensão do mundo e da
história. Podemos observar estes elementos no uso objetivo da técnicas, mas
também na analogia das novas experiências estéticas para a teoria do
conhecimento, pensando a história a partir de outra perspectiva: através de
suas imagens, sejam elas películas, fotos ou mesmo instantâneos históricos do
mundo, “agoras”, “instantes” atualizados a cada momento, gerando elementos para
a reflexão, relações críticas e dialéticas, como percebeu o teórico alemão
Walter Benjamin.
Inicialmente, os irmãos Lumière
não acreditavam em possíveis explorações comerciais de seu invento. O
cinematógrafo fazia parte de um fértil período onde muitas inovações técnicas
apresentavam-se como mistos de ferramenta científica e curiosidade tecnológica.
Os primeiros filmes dos Lumière são o resultado do processo experimental de seu
invento, submetidos, posteriormente, à apreciação pública. São imagens que
remetem, também, ao retrato da família inventora, seja no negócio ou na
alimentação do filho. A saída da fábrica, desta maneira, é o registro de um
patrão captando a imagem de seus empregados, comandando os seus movimentos na filmagem.
Quando falamos sobre as relações
do visível no cinema, poderíamos apontar neste processo três instâncias mais
claras: a pessoa que vê (e filma), aquela que é observada (filmada) e aquela
que assiste ao filme (uma “duplicação” da visão). Nesta concepção, a filmagem é
uma relação básica entre o sujeito e objeto do olhar. Analogamente aos
processos industriais, a realização cinematográfica afasta a pessoa filmada,
seja o ator ficcional ou o personagem do documentário, do processo fílmico como
um todo. Ou seja: o corpo se aliena dentro dos diversos passos da “linha de
montagem” cinematográfica, onde sua imagem não mais lhe pertence, mas
transforma-se, desloca-se, tornando-se algo afastado do próprio indivíduo. A
câmera “rouba-lhe a alma”, como no antigo clichê dos filmes, sobre o contato do
branco com o indígena, através de uma câmera. Por outro lado, podemos afirmar
que o sujeito filmado teria o seu corpo auto-representado, numa autoria do
corpo (e, depois, da voz) retirando-lhe o caráter de total sujeição perante à
câmera. Walter Benjamin aponta estas possibilidades sobre o operário
representado nos documentários soviéticos dos anos 20 e 30, em “A obra de arte
na era de sua reprodutibilidade técnica”. Portanto, dentro deste conflito
frontal de representações e sujeitos, nasce o filme.
O filme da saída da fábrica
mostra o nascimento do cinema dentro do processo industrial, onde as relações
de classe entre quem filma e é filmado repetem, de alguma medida, as presentes
no trabalho e na produção industrial capitalista. Mas, aquela imagem de caráter
documental revela, também, o corpo representado do operário em um ponto do
mundo e do tempo, em sua imagem e duração. Sua imagem, assim, “salta” de um
“instante qualquer” (nos termos de Fernão Ramos) de fugacidade e apagamento,
para a eternidade do instantâneo em que nós, espectadores, vemos a imagem
captada pela câmera, através da tela. E, ao menos nela, este instante teima em
sobreviver para a história.
https://cinemovimento.wordpress.com/2017/02/18/acabou-a-paz/
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