A VIDA NA ROMA ANTIGA
A sujeira contrasta com modernos e belíssimos
prédios de mármore, endereço de instituições públicas. Nas regiões mais nobres
da cidade, construções majestosas e imponentes abrigam as famílias ricas e seus
escravos. Dentro dos palacetes, não raro as festas, com fartura de comida e
bebida, evoluem para uma orgia.
São Paulo, Nova Délhi, Cidade do México? Nada
disso. Falamos de Roma, por volta do século 2, a capital do império mais
importante e poderoso que o mundo já conheceu. Em seu ápice, ela era quase
idêntica às metrópoles atuais. Aliás, Roma era ainda mais apinhada que os
exemplos anteriores: no ano 200 alcançou 1 milhão de habitantes e sua densidade
demográfica atingiu 66 mil pessoas por km2.
Mesmo superpovoada e tumultuada, Roma nunca sofreu
de baixa auto-estima. Prova disso era o costume de começar as proclamações
oficiais com a expressão latina Urbi et Orbi, ou seja, à cidade e ao mundo.
Era como se aquele formigueiro humano, sozinho,
tivesse tanto peso quanto todo o resto do planeta junto — o que não estava
assim tão longe da verdade. A cidade parecia uma miniatura do mundo: a primeira
megalópole da História tinha gente de todas as raças e línguas, além de ser
rica e exuberante. E um bocado bagunçada e perigosa.
Mas calma lá. Roma nem sempre foi um gigante
urbano. Tudo parece ter começado de forma modesta lá pelo século 8 a.C., quando
uma ou mais aldeias foram fundadas por tribos latinas (povo indo-europeu que
falava línguas ancestrais do latim) nas colinas perto do rio Tibre. O vilarejo
que surgiu aí tornou-se agrícola e aparentemente logo começou a manter boas
relações comerciais com seus vizinhos.
“Já no século 6 a.C. há sinais de contato com os
gregos e com os etruscos (povo que dominava o centro-norte da Itália)”, diz
Isabelle Pafford, professora de estudos clássicos da Universidade da Califórnia
em Berkeley, Estados Unidos. Nobres etruscos teriam fundado uma dinastia, mas
foram expulsos. Por volta de 500 a.C., nascia a República Romana.
Aproveitando-se da falta de um poder hegemônico
próximo e das eternas brigas que dividiam as cidades-estado italianas, a
república se organizou militarmente. Virou, nos séculos seguintes, senhora da
Itália inteira, incorporando cidades e cidadãos. Primeiro foram a Espanha e a
Sicília. Depois, a bacia do Mediterrâneo toda.
No século 1 a.C., o general Júlio César obteve a
conquista da Gália, atual França. A essa altura, não havia mais nada de
republicano em Roma. Otaviano, sobrinho-neto de César, tornou-se o primeiro
imperador romano com o nome de Augusto. Até 68, o poder ficou com sua família,
que ampliou os domínios, mas se mostrou corrupta, violenta e autoritária.
Depois da morte de Nero, os imperadores passaram a ser pessoas escolhidas por
mérito, e não por parentesco.
Coincidência ou não, a estratégia deu certo. As
disputas internas enfraqueceram e, sob o comando de Trajano, ex-general que
reinou de 98 a 117, Roma alcançou o auge de seu poderio militar e econômico.
Ele liberou presos políticos, tratou com deferência o Senado, anexou a Dácia
(atual Romênia e partes de outros países do Leste Europeu) e chegou, com seus
exércitos, até Susa (no Irã de hoje).
Qual o segredo de Roma? “O êxito do império por
tanto tempo deve-se a seu caráter assimilador”, afirma o historiador Pedro
Paulo Funari, professor da Universidade Estadual de Campinas e autor de A Vida
Quotidiana na Roma Antiga.
“Mesmo os povos vencidos acabavam incluídos como
aliados ou romanos. Assim, as pessoas — ou as elites, ao menos — participavam
do império. Além disso, a saúde financeira dele dependia do comércio, que era
favorecido pela criação de mercados conectados por seu domínio.”
Mesmo tão cosmopolita, Roma enfrentava problemas
inerentes a sua época. Nascer no império, mesmo em seu auge, não era tarefa
fácil. Por volta do século 2, a taxa de mortalidade infantil era de 400 para
cada 1000 bebês (hoje, a pior taxa do mundo é a do país africano Níger, com 150
mortes para cada grupo de 1000). Num lugar onde as mulheres eram encaradas como
propriedade de seus pais ou esposos, a que conseguisse dar à luz três filhos
vivos ganhava independência legal.
O índice de abandono das crianças recém-nascidas
também era altíssimo: ultrapassava os 20% entre os séculos 1 e 3. Os motivos
para abandonar um filho variavam de algum defeito físico ao simples fato de ele
ser do sexo feminino, já que os filhos homens eram mais valorizados por
manterem a linhagem da família. “É preciso separar o que é bom do que não pode
servir para nada”, escreveu o filósofo Sêneca, no século 1.
As crianças chegavam a ser enjeitadas até por
razões políticas: conta-se (embora não haja comprovação) que, quando o
imperador Nero matou sua própria mãe, Agripina, alguém abandonou um bebê com um
cartaz: “Não te crio com medo de que mates tua mãe”.
Passado esse primeiro e duro desafio, a criança
livre de nascimento e de boa família tinha sua educação entregue a um par de
escravos. O disciplinador pedagogo, geralmente um escravo idoso e severo, não
hesitava em usar o chicote. Uma escrava de origem grega (para ensinar a língua
cultural desde o berço), a maternal nutriz, amamentava o bebê.
Os escravos ensinavam meninos e meninas a ler e os
educavam até a puberdade, quando só os garotos continuavam seus estudos com
literatura clássica, mitologia e retórica: o ideal da educação não era aprender
uma profissão, mas ser capaz de impressionar em debates públicos ou disputas
judiciais.
Entre os romanos não existia maioridade aos 18 anos
— o rapaz só era considerado emancipado se seu pai morresse. A rigor, todos os
bens de um romano com genitor vivo podiam ser administrados por seu pai,
segundo a lei, mesmo que ele se casasse. O casamento, por sua vez, não tinha
nada de romântico: costumava ser um acordo entre famílias.
Os rapazes uniam-se por volta dos 20 anos e as
meninas, aos 14, embora não fosse incomum elas se casarem aos 12. Os homens
tinham certa preferência por noivas virgens. Se isso ocorresse, na noite de
núpcias, ele se limitava a fazer sexo anal com ela, para não apavorá-la.
Só os libertinos eram dados a luxúrias como fazer
amor em pleno dia (o costume era esperar a noite cair) ou com a mulher de seios
de fora (elas quase nunca se despiam completamente). Mesmo porque fazer sexo só
pelo prazer não era coisa que os homens faziam com suas esposas — o objetivo da
relação sexual no casamento era procriar.
Livrar-se do cônjuge, por outro lado, era simples:
bastava um dos dois querer. Havia maridos que nem sabiam que estavam
divorciados: suas esposas simplesmente voltavam para a casa dos pais e não
avisavam. Assim como a taxa de separações, o índice de amantes era
elevadíssimo.
A expectativa de vida durante o Império Romano era
muito baixa: girava em torno dos 30 anos. As péssimas condições de higiene
contribuíam para a transmissão de doenças, e mortes por enfermidades ou
ferimentos hoje considerados simples eram um bocado comuns.
A medicina era tão precária que, nos primeiros anos
do império, os chefes de família acreditavam deter todo o conhecimento
necessário para curar seus parentes usando ervas medicinais. E, diferentemente
dos gregos, que valorizavam os médicos, para os romanos a profissão era
considerada inferior — e relegada a escravos, libertos e estrangeiros.
Como várias das metrópoles atuais, a capital do
Império Romano era cheia de contrastes. Os aristocratas viviam em versões
luxuosas da domus, a tradicional casa da nobreza romana, que possuía água
corrente e piscinas aquecidas. Os vários cômodos da residência, como salas de
jantar e escritórios, ficavam em torno de um pátio central, o atrium.
Era nos escritórios que o rico romano antenado
estudava os filósofos da moda, como Epicteto ou Epicuro. Um hábito difundido
entre os aristocratas era o de promover enormes festas em suas casas – uma
forma de medir o prestígio de um nobre.
Nelas, comia-se e bebia-se muito: o costume era
servir cerca de sete pratos, que incluíam iguarias exóticas como língua de
passarinho. Os banquetes costumavam ter motivos religiosos. Para os romanos —
cuja religião era uma mistura de mitos gregos, estruscos e latinos, além de
crenças que assimilavam dos povos conquistados —, era normal essas festas
terminarem em orgias, já que deuses como Baco, do vinho, simbolizavam
desregramento.
Do lado de fora das mansões, o sossego era quebrado
por bandos de jovens conhecidos como collegia juvenum. Filhos de famílias
ricas, adoravam uma arruaça e, para se divertir, invadiam e quebravam lojas,
montavam violentas torcidas organizadas e até realizavam estupros coletivos de
prostitutas. “Volta do teu jantar o mais cedo possível, pois um grupo muito
excitado de jovens das melhores famílias saqueia a cidade”, diz o personagem de
um texto da época.
Por outro lado, a grande massa de pobres da cidade
— desempregados, pequenos comerciantes e imigrantes — vivia em apertadas
insulae (ilhas em latim), prédios de apartamentos com até nove andares feitos
de materiais frágeis como madeira e tijolos secos ao sol.
O térreo normalmente era ocupado por quitandas ou
outras lojas. “As diferenças sociais em Roma não foram maiores que em outras
sociedades. Mas havia políticas públicas que visavam os mais pobres. Milhares
deles recebiam trigo a preços subsidiados e existia um ministério voltado ao
abastecimento da população”, afirma o professor Funari.
Nos bairros populares do monte Aventino, lixo e
dejetos, feitos em penicos, eram despejados na rua, da janela. Quem preferisse
poderia usar uma latrina pública, onde as pessoas ficavam sentadas, com a
túnica arriada, à vista de todos. No fim, a chuva carregava tudo para a cloaca
máxima, sofisticado sistema de esgotos subterrâneos que usava a água que saía
dos banhos e fontes públicas para carregar os detritos até o rio Tibre.
No miserável bairro da Suburra, operários ou
desocupados bebiam em tavernas um vinho intragável, quase um vinagre,
dissolvido em água. Por segurança ou por pura pompa, abastados só passeavam por
lá (e pelo resto da cidade) aboletados em liteiras e precedidos por um séquito
de escravos. Como não havia polícia, eles também faziam as vezes de guarda
pessoal.
Roma era uma cidade insalubre. Mas os romanos se
esforçavam para manter a própria higiene. A prática dos banhos era amplamente
difundida, e tanto ricos como pobres freqüentavam as termas. Nelas, havia
piscinas de água fria, banheiras de água quente, salas com vapor e ambientes
para prática de ginástica — homens e mulheres usavam espaços diferentes.
Nos imensos complexos, relaxava-se, faziam-se negócios
e discutiam-se política e filosofia. “Nada é mais doce que o gongo, sinalizando
a abertura dos banhos”, dizia o senador e pensador Cícero no século 1 a.C.
A nobreza e a grande massa popular também se
misturavam nas famosas corridas de bigas do Circo Máximo ou nas populares lutas
de gladiadores, que se enfrentavam na arena (areia, em latim, por causa do
sedimento que recobria o cenário).
O principal palco dessas lutas, o Coliseu, foi
concluído pelo imperador Tito no ano 80 e possuía uma organização de fazer
inveja aos atuais estádios de futebol brasileiros: tinha um sistema de
coberturas retráteis contra a chuva e o sol excessivo e os vomitoria, saídas
que davam acesso direto aos assentos ou ao exterior e permitiam esvaziar o
local em minutos, sem tumulto.
Os jogos eram patrocinados pelos imperadores ou por
outros membros endinheirados da nobreza. A entrada era paga, mas os preços,
módicos. “Os espetáculos podiam ter um viés político para angariar votos, mas
eram muito mais que isso”, diz a historiadora Renata Senna Garraffoni, da
Universidade Federal do Paraná e autora de Gladiadores na Roma Antiga.
“Eram lugares de encontro entre as pessoas comuns e
expressavam a identidade do povo romano, seus valores culturais, como a relação
com os deuses, com a vida e a morte, suas ideias de virtude, de guerra, de
combate", explica.
As brigas, porém, não eram tão sangrentas assim.
Como os gladiadores eram profissionais valiosos, os derrotados eram poupados
com freqüência da morte. “Muitos viveram vários anos e até se aposentaram,
tornando-se instrutores de jovens gladiadores”, diz Renata. Diversos deles
viravam celebridades, objetos de desejo das damas mais assanhadas da nobreza.
Declarações de amor eram feitas a eles nas paredes
romanas. Os muros, por sinal, recebiam outros tipos de inscrição: propaganda
política, anúncios de comércio e simples provocações entre desafetos. Sutileza
não era o forte romano. Um dos grafites, por exemplo, traz: “Marítimo pratica o
cunilíngua por quatro asses [dinheiro da época], mas só aceita virgens:
batamos, então, em outra porta”.
Em Roma, era comum homens trocarem beijo na boca
como demonstração de amizade. O ócio era praticado pelos ricos durante a tarde
inteira: eles só liam, escreviam, conversavam. Viver de renda era mais
glamoroso que trabalhar. A propina era praticada em todas as instâncias e o
enriquecimento de políticos, absolutamente normal (ainda que muitos o
condenassem).
https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-vida-em-roma-antiga.phtml
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