A saga dos índios Charrua
Antes da chegada dos primeiros colonizadores europeus,
no século XVI, o extremo sul do continente americano era habitado por tribos
indígenas. Entre elas, a etnia Charrua, cuja origem mais remota corresponde à
região patagônica. Esses índios habitavam a Banda Oriental do Uruguai e os
pampas argentino e sul-riograndense. Como a sua sobrevivência era baseada,
sobretudo, na caça e na coleta de frutos, eram semi-sedentários, se locomovendo
pelo território conforme as estações do ano. Devido ao clima frio, a densidade
populacional era baixa. Mesmo assim, não existiam vazios geográficos, uma vez
que os Charrua aproveitavam os recursos naturais das regiões planas e
alagadiças de maneira sustentável.
Não é correto pensar nos Charrua como um povo
isolado, física e culturalmente. As interações com os Guaranis aconteciam com
frequência ainda que, por vezes, fossem conflituosas. Vínculos parentais entre
eles também foram constatados em estudos posteriores. O historiador Eduardo
Neumann revela que a tribo Guarani documentou partes de sua trajetória
histórica e citou episódios que envolveram os Charrua – geralmente, relatando
situações de saqueamento e disputas.
O nome “Charrua” foi atribuído à tribo, não há
informações precisas de como ela se autodenominava. Em comparação a outros
povos, como os Guaranis, a etnia Charrua carece de relatos confiáveis acerca de
suas particularidades. Os primeiros escritos eram carregados de preconceitos,
pois foram feitos por jesuítas e oficias militares, que julgavam as práticas da
tribo bárbaras e demoníacas. Por não se submeter ao domínio europeu, os Charrua
representavam uma ameaça e sofreram violentas e constantes perseguições. Os que
não foram exterminados tiveram que aderir ao modo de vida dos colonizadores, se
unir a outras tribos ou viver na clandestinidade. No século XIX, a etnia
Charrua foi considerada dizimada porque já não existia enquanto coletividade.
A etnia possuía algumas características físicas
semelhantes às demais tribos pampeanas, como por exemplo, pele escura, cabelos
lisos e pretos e nariz levemente achatado. Contudo, também trazia
singularidades, como olhos amendoados e estatura mediana. O corpo atarracado e
musculoso dos homens proporcionava agilidade, estava relacionado com as
atividades de guerra e de caça e representava virilidade.
Na tribo, predominava uma organização social
tradicional, com a superioridade e liderança masculinas. De acordo com o
professor e pesquisador de Antropologia da UFRGS, Sérgio Baptista da Silva, a
divisão de trabalho entre os gêneros era clara. “Ao homem competia formas de
buscar o alimento, geralmente a caça; além de expedições guerreiras. E às
mulheres cabia formas de coleta, raízes, por exemplo; o processamento de
alimentos e o cuidado com os filhos”, explica Sérgio. A unidade familiar era
decisiva na organização Charrua. Os índios viviam em pequenos grupos reunidos
em torno de um chefe, escolhido para guiá-los. Nem sempre a liderança era
determinada por fatores consanguíneos, em alguns casos, ocorria por afinidade.
Assim, um mesmo líder poderia orientar várias famílias, mas não obrigatoriamente.
Por mais que existisse esse comando, cada família possuía relativa autonomia. A
autoridade era exercida de maneira não-coercitiva, já que estava ligada ao
prestígio e à reputação do líder, que davam a dimensão do seu poder. Os Charrua
também se organizavam em “cacicados”, formados por vários grupos de caciques,
orientados por um cacique principal que guiava os demais.
A simplicidade das habitações Charrua estava
diretamente ligada ao modo de vida semi-sedentário (alguns historiadores
utilizam o termo nômade, mas a nomenclatura divide opiniões). Caçadores e
coletores, os índios precisavam se deslocar, por terra ou com canoas, pelo
território conforme o clima e a oferta de alimentos, levando suas moradias
junto. Sérgio Baptista da Silva esclarece que “essas habitações eram muito
expeditas no sentido de que eram facilmente retiradas do solo, presas só com
gravetos”. Conhecidas como toldas, tratavam-se de cabanas improvisadas e
propositalmente não-duráveis, feitas de galhos e folhas de árvores.
Para melhorar as condições de habitação das regiões
onde se instalavam, os Charrua transformavam o meio físico com práticas como a
construção de cerritos, formados a partir do acúmulo de peixes, crustáceos e
resíduos orgânicos. Em cima desses cerritos, os índios acomodavam suas toldas a
fim de protegê-las de possíveis enchentes, uma vez que o território, em geral,
era pantanoso. O arqueólogo alemão e professor da PUCRS, Klaus Hilbert, alerta
para o fato de que os aterros não serviam exclusivamente para proteção contra
alagamentos. “Vários sítios arqueológicos mostram que os cerritos foram
construídos em torno de uma praça central onde havia fogueiras e indícios de
cremação”, elucida Klaus.
Os cerritos também eram usados como cemitérios, os
corpos eram dispostos cuidadosamente e objetos do falecido eram enterrados com
ele, prática que comprova a crença Charrua na existência de vida após a morte.
O antropólogo Sérgio Baptista da Silva relata que “quando havia mudanças de um
local para outro, os restos funerários eram levados. Existia também alguns
relatos de auto-mutilação para mostrar o sofrimento da perda de um ente
querido, sempre masculino”. O historiador e professor da UFRGS, Eduardo
Neumann, também cita a extirpação das falanges (ossos dos dedos) como um costume
Charrua. Além disso, ele ressalta que “a tradição de cortar um dedo
intencionalmente para demonstrar dor do luto também foi praticada na Polinésia.
E estudos concluíram que seria possível uma migração dessa distância com
pequenas embarcações e meios de locomoção existentes”.
Em relação ao idioma, os estudos são escassos. “Não
existe nenhuma informação precisa ou algum vocabulário Charrua. Tem algumas
palavras soltas, como nomes de caciques, mas essa língua deixou de ser usada,
até onde se sabe”, analisa o antropólogo Sérgio Baptista. A falta de dados
concretos também impossibilita o conhecimento sobre os hábitos musicais da
etnia. “Alguns cronistas, historiadores e estudiosos do século XIX, como Félix
de Azara, apontam que os índios cantavam quando estavam tristes e tinham
músicas para rituais fúnebres”, afirma o arqueólogo Klaus Hikbert.
Entre os rituais Charrua, a temática da guerra era
bastante recorrente. Como exemplo, os relativos ao fortalecimento corporal e à
iniciação de guerreiros; para serem mais ágeis, os jovens precisavam correr
atrás de avestruzes e trazer uma pena. A pintura corporal é comprovadamente
importante para qualquer grupo indígena. Existem inúmeros registros de sua
ocorrência entre os Charrua. Eles traziam séries imensas de pinturas e padrões
gráficos no corpo, que também estavam ligados à pintura rupestre (gravadas em
paredes rochosas) e que ainda carecem de estudos.
A maior parte dos estudos arqueológicos acerca da
etnia aconteceu durante a formação do Estado nacional uruguaio. “Os primeiros
estudos arqueológicos são do final do século XIX. O uruguaio Joaquim Figueira
escreveu um livro sobre a pré-história do Uruguai, a relação dos objetos
encontrados e o sepultamento em cerritos”, exemplifica Klaus Hilbert. Os
produtos arqueológicos encontrados dão conta de pontas de lança e de flecha,
pesos de rede e cerâmicas Vieira (introduzidas pelo contato com os
colonizadores europeus). Os primeiros arqueólogos argentinos e uruguaios
escavaram nas regiões pantanosas, perto do Rio Paraná e das lagoas. Desde
então, começaram a relacionar os cerritos e os Charrua. Contudo, recentemente,
arqueólogos uruguaios ampliaram a área de pesquisa e constataram a presença de
cerritos em territórios que não são de terras alagadas, em cima de morros, por
exemplo. Essas descobertas demonstram que os aterramentos não eram planejados
apenas para proteção contra enchentes, mas eram parte da organização física da
etnia.
Os Charruas encaravam o corpo e o território de
forma diversa da vertente européia ocidental. Esta defende que a cultura e a
natureza são facilmente distinguíveis, enquanto a etnia acreditava que ambas
formavam uma unidade. Os grupos indígenas pampeanos, no geral, têm uma relação
muito forte sem separação entre natureza e cultura, são multinaturalistas. Ou
seja, para eles todos os seres vivos, sejam eles humanos ou extra-humanos, tem
subjetividades. “Então, o mundo, o cosmos, para os Charrua, não tem uma divisão
ontológica entre natureza e cultura, na medida em que os animais e os vegetais
tem uma potência que a gente poderia chamar de uma propriedade imaterial, uma
subjetividade, como um humano”, explica o antropólogo Sérgio Baptista da Silva.
No Brasil, algumas teorias trabalham com essas noções, sob a corrente do
perspectivismo ou animismo.
Para os Charrua, como existia a possibilidade de
comunicação entre animais e humanos, se caracterizava uma relação social.
Trata-se de um sistema xamânico cosmológico que considera os seres como uma
sociedade. Por exemplo, é a propriedade imaterial das árvores que possibilita,
nos rituais de cura, que elas interfiram na saúde do paciente. “Os Charrua consideram que a humanidade está
presente em outros seres. Os corpos e as roupagens são diferentes, mas a
cultura é única, havendo uma mesma forma de humanidade”, finaliza Sérgio.
O modo de vida dos Charrua sofreu mudanças
significativas com a chegada dos portugueses e espanhóis na América,
especificamente no sul do continente, no século XVI. Rebanhos em geral foram
introduzidos pelos colonizadores e alteraram a mobilidade dos índios. Eles
passaram a se valer da montaria, se deslocando mais rápido e entre distâncias
maiores, até porque precisavam fugir constantemente. Além disso, as peles dos
animais serviam para cobertura das toldas.
A
historiadora da PUCRS, Maria Cristina dos Santos, afirma que “não existiram
projetos de catequização dos Charrua”. Apesar disso, pequenos grupos foram
catequizados sem compromissos maiores com a Igreja Católica e com os
colonizadores. A etnia não se submeteu ao aldeamento – a um estilo de vida
limitado a um território fixo – diferentemente de outros povos indígenas. Nas
reduções em geral, conviviam pessoas de origens distintas, portanto sua
população era heterogênea. O local
ocupado por etnias minoritárias era conhecido como “bairro”, informa Maria
Cristina. Os Guaranis e Kaigangs, que
tiveram um relacionamento mais próximo com os europeus, vivendo em reduções,
foram mais observados e estudados. Por esse motivo, as suas culturas ficaram
preservadas de modo mais significativo do que a Charrua.
A presença Charrua passou a incomodar os
colonizadores na época de formação dos Estados Nacionais uruguaio e argentino.
Quando os grandes fazendeiros começaram a medir os campos, criar gado e tomar
conta da região, os índios que vagavam pelos Pampas passaram a representar uma
ameaça, pois invadiam as terras privadas.
Nos séculos XVIII e XIX, houve um processo
avassalador de conquista e extermínio, tanto que grupos que antes tinham uma
identidade diferente (Charrua e Minuano) precisaram se unir para fazer face a
essa violência. Em 1701, ocorreu um ataque Charrua ao altar e à Igreja na
redução de Japeju – noroeste do Rio Grande do Sul, margem direita do rio
Uruguai. Para se vingar, os colonizadores perseguiram os índios pela mata,
aprisionaram e exterminaram cerca de 500 índios, conforme documentos da
época. Alguns massacres posteriores são
comprovados por material fotográfico que mostra corpos de Charrua brutalmente
assassinados. Durante longo tempo, essas fotografias foram mantidas em sigilo
em repartições e bibliotecas uruguaias.
Durante a Guerra de Independência do Uruguai, os
índios foram convocados a lutar pelo Estado em formação. Mas os Charrua foram
traídos, capturados em emboscadas e massacrados pelas tropas do General
Rivera. Eles estavam se tornando
elementos de revolta e de inquietação, o que motivou as Guerras de Extermínio,
principalmente na década de 30 do século XIX. Morreram, principalmente, os
homens, que eram a força principal do grupo; as mulheres e as crianças foram
empregadas pelas famílias ricas de Montevidéu e Buenos Aires e pelas estâncias
das cidades. Apesar do expressivo número de mortes, o historiador Eduardo
Neumann ressalta que o episódio não pode ser chamado de genocídio, mas de
etnocídio, uma vez que foi a etnia Charrua que desapareceu. Não havia
evidências de sua presença física e os governantes consideravam que, se ainda
restassem membros desse povo, eles estariam destinados ao desaparecimento por
conta dos imigrantes e da expansão da civilização. Os historiadores Eduardo
Neumann e Maria Cristina dos Santos destacam que ocorreu uma espécie de
“invisibilização” da etnia Charrua, uma vez que, para sobreviver, os índios
precisavam abrir mão da sua identidade em prol de uma identidade indígena
genérica.
Os supostos últimos Charrua foram levados por
alguns colonizadores europeus como atração circense para Paris, ainda no século
XIX. Tratava-se de um grupo pequeno, composto por três homens, uma mulher e um
recém-nascido. Era comum povos “exóticos” serem exibidos em zoológicos, circos
e exposições na Europa. O arqueólogo Klaus Hilbert acrescenta que o grupo
Charrua “foi recebido como sanguinário, rebelde e comedor de carne humana”.
Eles morreram dentro de poucos anos, por fome e doenças infecciosas.
https://www.ufrgs.br/ensinodareportagem/cidades/charrua.html
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